02/05/2013 | Mexendo o pirão.

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Resenha por: Sabrina Fernanda Demozzi

O livro “Mexendo o Pirão - Importância Sociocultural da Farinha de Mandioca no Brasil Holandês (1635 a 1646)” faz parte de uma longa pesquisa de Adriano Marcena referente às análises culturais de documentos e fontes acerca do processo histórico de Pernambuco. Em 2010, o autor publicou o “Dicionário da Diversidade Cultural Pernambucana”, livro que é resultado de mais de dez anos de pesquisa sobre as mais diversas expressões da cultura pernambucana como gírias, culinária, futebol, fauna, flora, entre outros. Em “Mexendo o Pirão”, Marcena direciona seus objetivos principalmente para as construções materiais e simbólicas a partir do ingrediente considerado primordial na história da alimentação brasileira: a farinha de mandioca.

O recorte temporal analisado- 1635 a 1646- contempla o período da invasão holandesa em Pernambuco especialmente como referenciado pelo autor “dentro do espaço da Capitania de Pernambuco, então sob o controle das Companhias das Índias Ocidentais ante a objeção da população local e da coroa hispano-portuguesa.” Por meio da análise de fontes como documentos administrativos, relatórios, diários de viagem e correspondência, Marcena procura investigar as bases da alimentação durante o período de ocupação. É interessante a análise do autor relacionando o consumo da farinha de trigo pelos indígenas e pelos batavos (1). Enquanto para os indígenas, o alimento carrega importante elemento identitário que além de garantir o sustento da população, também é, considerando seus processos de fabricação e significados, um elo capaz de perpetuar o alimento como cultura de geração para geração. Para o paladar do europeu, entretanto, acostumado aos produtos feitos com a farinha de trigo, a farinha de mandioca não carrega nenhum valor simbólico, sendo considerada preparação primária, de pouco valor. É reconhecida, porém, como alimento de subsistência, quando da ausência de insumos oriundos da Europa e também como moeda de troca.  

“A farinha serve como cimento a ligar todos os pratos e todas as comidas”, citando Roberto da Mata o autor relaciona simbolicamente a farinha de mandioca como “elemento de ligação entre culturas distintas na construção do paladar nacional”. Além desta questão, importante ressaltar a incorporação do alimento “pagão” na produção de hóstias que funcionariam como uma ferramenta da “conversão das almas do ameríndio” e que permitiria uma relação identitária com o alimento, de pertença e reconhecimento. Neste sentido, o livro de Adriano Marcena também contribui para apresentar outro panorama culinário nesta complexa rede cultural. Trata-se das relações alimentares dos grupos de judeus que desembarcaram em Pernambuco no século XVII. Considerando as leis que regem a dietética judia e os impedimentos de consumo de determinados alimentos, o autor pontua que em meio à guerra foi preciso rever os custos e também formas de administrar a carência de ingredientes, como a farinha de trigo. De acordo com o autor, provavelmente os judeus utilizaram a tapioca como “disfarce para o pão ázimo, a matzá” diante do contexto era mais adequado prosseguir com a produção da matzá-bolacha símbolo da Pessach – com os ingredientes disponíveis do que deixar de fazê-lo no intuito de se manter as tradições.

O livro de Adriano Marcena presta importante contribuição para os estudos em História e Cultura da Alimentação não apenas por analisar os processos históricos que tornaram a farinha de mandioca um dos alimentos base da história da alimentação no Brasil, mas também por apresentar aos leitores como a preparação fortaleceu o sentimento de pertença, perpetuação de saberes e tradição e como até hoje é considerado elemento de identidade entre os habitantes da região nordeste do Brasil.



(1) O autor justifica a escolha do termo batavos para fins didáticos, uma vez que seria generalista referir-se aos holandeses na conquista de Pernambuco. Citando Manual Correia de Andrade autor de Itamaracá: uma capitania frustrada, Marcena salienta que a conquista não foi feita pelo estado, a Holanda, mas sim por uma companhia comercial sediada em Amsterdã composta por grupo diverso e heterogêneo de flamengos, polacos, ingleses, alemães, franceses e judeus que são comumente generalizados em textos brasileiros, como se os holandeses, batavos ou flamengos fossem um único grupo.         


 

Universidade Federal do Paraná - História da Alimentação