História
do peru na ceia de Natal
Autor: Prof. Carlos Roberto Antunes dos
Santos – UFPR
Publicado em: Gazeta do Povo, 24 de dezembro
de 2004
Entre os astecas, a prática do canibalismo
era habitual. O Estado asteca fazia a guerra
para se alimentar dos prisioneiros, num
ritual prévio onde ao Deus Sol eram
oferecidos sacrifícios humanos. Mas
a dieta não ficava exclusiva à
carne humana. Eles também se alimentavam
de animais possíveis de serem encontrados
nos seus domínios: os cães
e os perus. Os perus eram criados pelos
índios, atividade bastante antiga,
com clima propício para a prosperidade
desta criação. Geralmente
os astecas cozinhavam o peru acompanhado
de cebola, alho-poró e molho à
base de pimenta vermelha.
Em 1518, quando do início do contato
entre os índios e espanhóis
no processo colonizador do México,
F. Cortez tomou conhecimento do peru como
ave para alimentação exposta
no mercado de Tenochtitlán, capital
asteca, trazendo, após, alguns exemplares
para a Europa. O peru também vivia
em estado selvagem nos bosques do Canadá.
Foi ao longo do século XVI que a
Europa descobriu essa ave, um pouco estranha,
que foi chamada de "galinha da Índia",
pois muita gente ainda confundia a América
com as Índias Ocidentais. Os jesuítas
a introduziram como prato em seus colégios
religiosos. A Inglaterra tomou conhecimento
da ave em 1525, sendo que rapidamente constituiu-se
no prato principal da ceia de natal entre
alguns países europeus, e somente
após na América do Norte.
Para Brillat Savarin, o peru foi um dos
mais belos presentes que o Novo Mundo ofereceu
ao velho Continente. Em meados do século
XIX o peru, praticamente, substituiu o cisne
como ave de natal na Inglaterra, popularizando-se
definitivamente.
A introdução e fixação
do peru como prato principal na Europa e
nas Américas, incluindo o Brasil,
na comemoração do nascimento
de Cristo, transformou o ritual do jantar
de Natal em ceia. A abundância, e
mesmo a extravagância, caracterizam
a essência do momento da ceia de Natal,
pois este ritual passou a ser entendido
como expressão simbólica do
sucesso frente aos ditames da vida cotidiana
ao longo do ano. No Brasil, dependendo das
disposições financeiras das
famílias esta ceia, além do
peru assado, pode comportar diversos outros
pratos como salpicão, outras saladas,
ostras, arroz à grega, pernil de
porco, frutas, panetone, castanhas, nozes,
bolos. No sentido da ceia como festa, o
prato principal deve ser o assado pois,
segundo Levi-Strauss, de acordo com as nossas
convenções sempre que o menu
inclui um prato de carne assada ser-lhe-á
conferido um lugar de honra no centro da
refeição. Portanto, num momento
de demonstração de abundância,
e mesmo de desperdício, o assado
recebe um status superior em relação
ao cozido. Na obra "O Triangulo Culinário",
Strauss revela que do contraste entre os
estados assado e cozido emergem características
universais: no cozimento se conserva a carne
e seus sucos, ao passo que o assado constitui
um processo de destruição
e perda. Assim um denota economia; o outro
prodigalidade; o assado é aristocrático,
o cozido é plebeu! Desta forma, os
estados dos alimentos são apropriados
para usos e abusos como símbolo de
diferenciação social.
Em alguns lares, o chefe da família
é convocado para trinchar o peru
assado e dividi-lo entre os presentes. E
neste ritual prevalece a hierarquia entre
os convidados bem como as deferências,
pois as ofertas das partes do peru, e mesmo
de outros assados, eram graduadas segundo
a posição social dos convidados:
1. Ao convidado mais ilustre, o dono da
casa dizia: "Caro Sr. ...poderia eu
ter a ousadia de lhe oferecer uma parte
do perú?";
2. Ao segundo convidado em dignidade, dizia
"O Sr. teria a gentileza de aceitar
um pedaço de peru?";
3. Ao terceiro convidado na hierarquia
à mesa, o dono da casa perguntava:
"O Sr. quer peru?";
4. Ao quarto na hierarquia oferecia:"um
pouco de peru?";
5. enfim ao quinto perguntava, com um pequeno
aceno com a faca, "peru?".
Ainda no final do século XIX este
ritual incluía a arte de amolar a
faca; o trinchamento competente da ave pelo
chefe de família, sentado ou levantado;
as perguntas usuais sobre as partes que
se deseja saborear e a oferta do molho.
Esta cerimônia de trinchar a carne
do peru é cada vez menos usual, mas
ainda se mantém na Inglaterra.
No Brasil, além do prato, o peru
tornou-se bastante popular como o número
20 no jogo do bicho, e como tema de música
de carnaval. Como comida, principalmente
na área rural que é o prodígio
da memória gustativa, é considerado
rei das festas, de acordo com Rachel de
Queiroz, recebendo, antes do abate, um tratamento
previamente estabelecido: uma ave nova,
no seu tamanho máximo de crescimento,
papo amplo, coxa grossa, muita carne de
peito e em quantidade suficiente para o
número de convivas. Após colocado
no quintal era-lhe preparado o porre de
véspera da ceia de natal. O seu bico
era aberto e despejado dois tragos de pinga
goela baixo. Estas medidas eram suficientes
para amolecer a carne, largar os músculos
e desabar no chão. Um outro método
era abrir a goela do peru e enfiar forçosamente
punhados e punhados de milho, no sentido
de inchar a ave para ser mais facilmente
digerida. Daí diretamente para o
forno, cujo assado torna-se o prato principal
da ceia de Natal bem brasileira. Segundo
Nina Horta, em meados dos anos 50, a tradição
de comidas bem brasileiras foi rompida.
Influenciada pela cozinha americana, a nossa
ceia de Natal começou a desprezar
a farofa, sendo que o peru e o pernil aparecem
guarnecidos com frutas frescas, compotas,
doces de figos, pêssegos e abacaxis.
As histórias da comida revelam os
tempos da memória gustativa, onde
a gastronomia deixa a cozinha e invade a
academia, com dissertações
de mestrado e teses de doutorado abordando
cada vez mais o tema. Falar de comida deixou
de ser um apanágio exclusivo das
donas de casa ou de chefs de restaurantes.
As receitas culinárias, os livros
de receitas e os relatos empíricos
constituem importantes fontes históricas,
em projetos de pesquisa multi e interdisciplinares.
Carlos Roberto Antunes dos Santos é
professor Titular de História do
Brasil, área de História da
Alimentação.
Referências Bibliográficas:
• BRILLAT-SAVARIN. A Fisiologia do
Gosto. Rio de janeiro: Salamandra, 1989.
• HORTA, Nina. Não é
Sopa: Crônicas e receitas de comida.
S. Paulo: Companhia das Letras, 1995.
• LEVI-STRAUSS, C. Le Triangle Culinaire.
Aix-en-Provence: l’Arc, n° 26,
1965.
• QUEIROZ, R. O Não Me Deixes.
Suas histórias e sua cozinha. S.
Paulo: Siciliano, 2000.
• SANTOS, Carlos R. A. Por Uma História
da Alimentação. Curitiba:
História: Questões & Debates,
n° 26/27, dez. 1997.
• VISSER, M. O Ritual do Jantar. Rio
de Janeiro: Campus, 1998.
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